
Em um casarão histórico na Avenida Independência, uma porta discreta leva para um templo da boemia que marcou a vida social de Porto Alegre nas décadas de 1960 e 1970. Considerado por alguns um bar "secreto" por seu exterior pintado de preto e identificação sutil na fachada, o Encouraçado Butikin vem chamando a atenção do público maduro que busca relembrar o passado e de jovens que buscam atrações diferenciadas na noite da Capital.
Fundado em meados da década de 1960 pelo advogado Rui Sommer, o Encouraçado Butikin se tornou o ponto de encontro da alta sociedade, intelectuais e artistas em Porto Alegre. Nomes como Elis Regina, Chico Buarque e Vinicius de Moraes marcaram presença no local.
Após interrupções e reaberturas, em 2024 o espaço ressurgiu logo após uma longa reforma, buscando resgatar a essência do bar original, mas mesclando com toques contemporâneos e programação cultural.
A ideia é oferecer um local onde o público possa apreciar boa música em um ambiente de qualidade, repleto de história e carregado de memórias afetivas, explica Sofia Refinetti Teixeira, que é sócia do empreendimento juntamente com o marido, Ricardo Niemiec Teixeira.
— Faltava uma casa boa, chique, para a nossa idade em Porto Alegre. Um público mais maduro que gosta de relembrar uns hits dos anos 1980 e 1990. Amanhã (sexta-feira, 6) faço aniversário e estou trazendo 50 amigos, muitos do Interior, que lembram do quanto o Encouraçado movia emoções naquela época. Era uma época de ouro. É uma nostalgia positiva, mexe com a emoção — analisa a decoradora de interiores Cristina Rey, 60 anos, que frequentou a casa quando era jovem.
Atrações para o público jovem
Embora o público seja composto majoritariamente por pessoas acima dos 30 anos, diferentes ritmos musicais — com foco em jazz, rock e pop — e atrações como coquetelaria autoral e duelos de piano, também têm conquistado a atenção dos mais jovens.
— É muito legal ver essa cena diferente em Porto Alegre. Apesar de sermos jovens, muitos de nós também querem ter uma experiência assim, diferente dos bares comuns que vemos em todas as esquinas. Eu trouxe o meu namorado francês para conhecer e estamos muito curiosos para ver o duelo de pianos. Foi isso que nos trouxe até aqui — comenta Marthina Webber, 24 anos.
A jovem estava acompanhada do namorado, Guillaume, além de três amigas e dois amigos na faixa dos 20 anos, para o duelo de pianos realizado na quinta-feira (5). Ela também celebrou a retomada de um local histórico, que fez parte da vida de muitos porto-alegrenses.
— Eu acho que a reabertura do bar representa uma retomada dos locais clássicos da cidade, que foram muito famosos, mas acabaram perdendo espaço com o tempo — afirma.
Três ambientes e diversas experiências
Se eventualmente o exterior do bar pode passar despercebido pelos menos atentos exploradores da Capital, o interior revela três ambientes distintos, que foram reformados e pensados para garantir o conforto dos clientes.
— Não é uma fachada de Las Vegas. Não temos outdoors iluminados na entrada. Nosso objetivo é atrair quem realmente se identifica com o conceito da casa: pessoas que apreciam boa música, coquetelaria de qualidade e a história do bar — destaca a sócia Sofia Refinetti sobre a proposta do empreendimento.
Um dos ambientes da casa é o Butikin Hi-Fi, considerado o primeiro "bar de audição" (listening bar) de Porto Alegre. É um espaço intimista, acusticamente projetado para que o som de vinis seja apreciado com alta qualidade.
Um outro ambiente é o Clube 936, que abriga uma galeria de arte e é onde acontece uma das principais atrações do novo Encouraçado Butikin: o duelo de pianos.
Inspirada em experiências de cidades norte-americanas como Nova York e San Diego, o duelo transforma dois pianistas em verdadeiras jukeboxes ao vivo. Eles são desafiados pelo público a tocar, a partir de pedidos feitos em bilhetinhos diretamente das mesas, sucessos do pop, rock, jazz e MPB.
Na quinta-feira (5), quando a reportagem de Zero Hora acompanhou o evento, hits de Elton John e Taylor Swift foram requisitados pela plateia.
Além do duelo de pianos, a programação inclui a "Quinta das Estrelas", que é realizada no ambiente chamado de Encouraçado Hall e que traz nomes do rock gaúcho. A estreia deste evento mensal ocorreu na quinta-feira (5), com o show de Charles Master, da banda TNT.
— Viemos assistir ao show e achamos ótimo que estejam trazendo bandas de rock para cá. Como não vivemos a época dessas bandas, é muito bom ter essas opções culturais. Além do rock, o conceito do bar nos chamou a atenção e queremos voltar para assistir ao duelo de pianos — afirmou Eduarda Gutierres, 26 anos, que estava acompanhada por Murilo Heinicke, 26 anos, ambos desenvolvedores de software.
Realização de um sonho
A reabertura foi resultado do sonho do casal Ricardo Niemiec Teixeira, oftalmologista, e Sofia Refinetti Teixeira, psicóloga. A empresária explica que o companheiro nutria o desejo por abrir um bar e, motivado por lembranças do Encouraçado Butikin e conexões afetivas, decidiu investir no projeto.
Teixeira também é amigo do fotógrafo Eduardo Alvares Filho, que é filho de Dudu Alvares. Dudu ficou conhecido como o “rei da noite”. Ele assumiu a direção do local em 1981, após o falecimento do fundador Rui Sommer. Naquela época, o bar passou a se chamar Encouraçado 936.
— A história do Encouraçado Butikin é apaixonante. Ele é patrimônio de Porto Alegre, é como um museu, porque esse bar carrega a alma e a essência da boemia na cidade. Porto Alegre é uma cidade boêmia, teve o seu glamour no Encouraçado Butikin, que foi uma boate referência, um templo de noite. Aqui é um espaço de memórias afetivas. Há muitas pessoas que entram aqui e contam que foi aqui que deram o primeiro beijo, que conheceram a esposa, o esposo — relembra Sofia.
Relembre o legado do bar
Na metade dos anos 1960, o advogado Rui Sommer (1939-1972), após um ganho inesperado em uma ação judicial, decidiu atender ao conselho do amigo Tatata Pimentel, falecido em 2012, e abriu em Porto Alegre uma casa noturna inspirada nos clubes privés que estavam em alta naquela época.
Assim surgiu o Encouraçado Butikin, uma boate que se tornou um marco na vida social de Porto Alegre. Em meio ao regime militar, o nome escolhido — uma referência ao clássico filme soviético Encouraçado Potemkin (1925), dirigido por Serguei Eisenstein e que retrata a revolta dos marinheiros contra a marinha czarista em 1905 — não agradou às autoridades. Sob a justificativa de que o material era subversivo, a censura ordenou a remoção de um painel fotográfico que retratava uma cena icônica do filme, instalado no fundo do salão.
Mesmo assim, o local continuou a atrair a elite porto-alegrense, intelectuais, artistas nacionais e internacionais, além de pessoas influentes.
A identidade visual da casa, com o desenho de uma pequena sereia usando boina da Marinha Imperial Russa, foi criada pelo cartunista Ziraldo. Esse logo foi reformado com a reabertura da casa, mas mantendo a figura da sereia.
Após a morte de Sommer em 1972, o bar reabriu na década de 1980 sob a gestão de Dudu Alvares, mantendo a tradição até 1990. Passou por períodos de fechamento e reabertura, até encerrar definitivamente em 2003.