
Todo inimigo é íntimo.
Todo inimigo já foi seu amigo, e usa seus segredos contra você.
Todo inimigo sabe mais de você do que um adversário declarado.
Ele parte de uma afeição que se tornou hostil, surge de uma cumplicidade que se tornou tóxica.
É alguém que já frequentou o seu círculo, que conviveu com a sua família, que comeu à sua mesa.
Só poderia ser nomeado “inimigo” quem foi antes seu leal escudeiro.
Aquele que não gosta de você, mas não o conhece — ou o conhece superficialmente —, merece ser caracterizado, no máximo, como desafeto.
Inimigo é uma palavra potente. O amor se transforma em ódio e as retaliações são manifestações passionais e secretas de apego.
Talvez o ódio seja um amor mascarado. Ou o amor de outrora consistisse tão somente em um disfarce da inveja.
Foi assim na tradição bíblica: Caim e Abel, Jacó e Esaú, Saul e Davi.
Foi assim na mitologia: Rômulo e Remo, Aquiles e Agamenon.
Foi assim ao longo da história: Brutus e Júlio César, Trótsky e Stálin, Napoleão e Talleyrand, Dom Pedro I e José Bonifácio.
A rixa entre o empresário Elon Musk e o presidente dos EUA, Donald Trump, exibe o caráter shakespeariano de tragédia — do colega de trincheira que se volta contra nós.
Parece que o cabo eleitoral mudou de lado e está disposto a remover Trump do seu segundo mandato.
Se a inimizade no ambiente doméstico já causa estrago, imagine, então, quando envolve a pessoa mais rica do mundo e o político mais poderoso.
Ambos possuem a lábia desmedida, a postura predatória e imprevisível, a ganância ilimitada e a competição como combustível para os negócios.
As diferenças recrudescem quando as ofensas não acontecem no plano privado: são primeiramente públicas, despontando no megafone das redes sociais, com a plateia atenta de milhões de usuários.
Musk deixou o governo após chefiar uma missão de corte de gastos, denominada Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, sigla em inglês). Trump, por sua vez, alega que ele teria sido mandado embora de qualquer jeito.
Musk questionou os planos de Trump para um novo projeto de lei sobre impostos, apelidado de “One Big Beautiful Bill”, chamando-o de “abominação repugnante” e alertando que aumentaria o déficit nacional em US$ 2,4 trilhões nos próximos 10 anos.
Em resposta às críticas de Musk, que considerou as despesas excessivas e inconsequentes, Trump apontou as volumosas negociações comerciais de Musk com o governo federal — que são a força vital do seu programa SpaceX — e o fim de incentivos a projetos de energia limpa que beneficiavam a produção de carros elétricos — o que atingiria diretamente a Tesla, empresa de Musk. Ameaçou usar a máquina estatal contra o bilionário da área de tecnologia, suspendendo contratos. O preço das ações da Tesla despencou 14% na quinta-feira (5).
Musk contra-atacou, sugerindo que Trump deveria ser destituído do cargo e que estaria presente nos arquivos não divulgados de Jeffrey Epstein, acusado de comandar uma rede de tráfico sexual com menores de idade.
Foram apenas dez dias de ira e fúria, porém com efeitos bombásticos na economia, assinalando o eclipse da lua de mel entre os antigos e superlativos aliados, iniciada durante a corrida presidencial.
Mesmo antes da vitória, o republicano e o investidor viviam de elogios, de rasgação de seda e de dólares. Musk afirmava que Trump representava um “cara bom”, “forte”, e que salvaria o país — afagos retribuídos durante o discurso da vitória, quando Trump reservou alguns minutos da tribuna para caracterizar Musk como “supergênio” e “um cara incrível”.
O tempo adocicado de juras mútuas e do romance de objetivos em comum, que durou um ano, mostra-se profundamente adoentado.
A carta branca recebida por Musk no início da gestão agora é capaz de destruir a Casa Branca de Trump.
Como qualquer novela de vira-casaca, a ingratidão é o principal argumento usado para justificar a nova conduta.
Elon Musk não fugiu à regra: “Sem mim, Trump teria perdido a eleição”.