
A lei federal que obriga profissionais da saúde a comunicarem a polícia em até 24 horas sobre qualquer caso de violência contra a mulher completou, em março desde ano, cinco anos de vigência. Porém, na prática, a aplicação efetiva da medida — instituída com o objetivo de frear agressões psicológicas e físicas com o auxílio da rede pública e privada de saúde — ainda esbarra no medo das vítimas e de trabalhadores no Rio Grande do Sul e no país.
Em meio à escalada de feminicídios registrada em abril no Rio Grande do Sul, o governo do Estado anunciou, na segunda-feira (19), um acordo de cooperação entre as secretarias da Saúde e da Segurança Pública com o objetivo de estabelecer um fluxo na troca de informações entre os profissionais de saúde e autoridades policiais. Um passo importante para tirar a lei do papel, mas que deve enfrentar desafios.
— A gente tem que ter uma intersetorialidade muito bem articulada para isso funcionar, porque a violência (contra a mulher) não é um tema só da saúde nem só da segurança pública. É um tema que envolve várias outras políticas — afirma Priscila Wolff Moreira, chefe da equipe de Vigilância de Doenças não Transmissíveis da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre.
A lei federal 13.931 foi sancionada em 2019 e passou a vigorar em março de 2020. Ela estabelece que "os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendidos em serviços de saúde públicos e privados serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos". Esse ponto atualizou e tornou mais rígida uma lei federal de 2003, que já tratava da notificação compulsória de casos de violência contra a mulher atendidos em serviços de saúde, porém não citava a polícia.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) afirmou não ter informações sobre a aplicação da lei em nível nacional. A entidade entende que "estando vigente, a lei deve ser seguida". O Ministério da Saúde também foi procurado para esclarecer sobre a regulamentação da lei, mas não se manifestou até o momento.
O caminho da notificação
Atualmente, qualquer caso atendido na rede pública e privada é notificado de forma obrigatória no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. O sistema recebe não somente informações de casos de doenças, mas também de diferentes tipos de violência física e psicológica. Serve ainda como ferramenta para políticas públicas na área da saúde.
O preenchimento do sistema começa após a saída do paciente da unidade de saúde. Em um formulário físico padrão do Ministério da Saúde, o profissional de saúde coloca os dados do paciente e informações da doença ou agravo. Em Porto Alegre, o formulário é online.
A ficha é encaminhada para a vigilância em saúde municipal, que, por sua vez, revisa os dados, consulta a unidade de saúde (se necessário) e repassa os dados ao sistema do Sinan. Uma vez lá, tanto a Secretaria Estadual da Saúde (SES) quanto o Ministério da Saúde podem consultar os atendimentos.
Polícia ainda não tem acesso a dados específicos
Apesar de o Sinan registrar detalhes das informações prestadas por pacientes, a polícia, por ora, não tem acesso aos dados específicos dos atendimentos. O Estado evita prazos para implementar a troca de informações entre a SES e a Segurança Pública nem que tipo de dados serão compartilhados.
— Recebendo essa notificação compulsória, a Polícia Civil vai partir para uma averiguação. Confirmando realmente que houve uma situação de violência doméstica, se instaura um inquérito e se adotam ações como o pedido de medida protetiva — projeta Sandro Caron, secretário estadual da Segurança Pública.
Segundo a SES, um dos cuidados tomados é sobre como serão tratadas informações consideradas sensíveis, uma vez que há pacientes vítimas de violência que não buscam ajuda policial.
— O que a gente vai ou não repassar e como os dados vão ser trabalhados, isso ainda está sendo articulado e planejado entre a Saúde e a Segurança — afirma Tani Ranieri, diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), da SES.
O medo dos profissionais da saúde
A relação de confiança estabelecida entre as pacientes e os profissionais da saúde — como médicos, enfermeiros, técnicos, psicólogos e assistentes sociais — é um dos pontos mais delicados no processo. Um dos receios é que a troca de informações leve à identificação dos profissionais responsáveis pelo acolhimento.
— Talvez a mulher não procure mais o posto de saúde como procura hoje, porque sabe que o enfermeiro ou que o psicólogo vai ser obrigado a chamar a polícia — avalia Gerusa Bittencourt, gerente de Atenção Primária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), que mantém 12 postos de saúde em Porto Alegre.
O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) diz ser favorável a uma regulamentação da lei federal. Para a entidade, o estabelecimento de regras na troca de informações poderá trazer tranquilidade aos médicos. Porém, o presidente da entidade frisa a necessidade de atenção à segurança.
— Os médicos estão num contato direto, muitas vezes, com os próprios agressores. Justamente por isso, precisaríamos criar uma condição de segurança para que os profissionais agissem. Entretanto, reconhecemos claramente que é um problema sério — explica o presidente do Simers, Marcelo Matias.
Porto Alegre possui lei municipal
Desde o início do ano, a capital gaúcha conta com uma lei municipal própria que trata da comunicação entre a rede de saúde e a polícia. Sancionada em janeiro pelo prefeito Sebastião Melo, a proposição foi dos vereadores José Freitas (Republicanos) e Fernanda Barth (PL).
Porém, a norma apenas "recomenda" que hospitais, clínicas e laboratórios, entre outros, comuniquem a polícia quando houver indícios ou confirmação de violência contra mulheres, idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência. A aplicação da lei ainda é debatida.
— É uma questão que está sendo discutida. Em saúde, a gente tem que pensar primeiro em dar suporte para aquela pessoa que foi vitimizada. Dependendo, uma mulher que chega não quer fazer uma denúncia. É um trabalho a ser feito — explica Rosa Vilarino, assessora técnica da área na Atenção Primária da SMS.
Dados da prefeitura de Porto Alegre apontam que, dos 404 casos de violência notificados na rede de saúde este ano, 84% envolveram pessoas do sexo feminino. E dos 309 casos de violência sexual, pessoas do sexo feminino representaram 89% dos pacientes. Números que deixam claro se tratar de um contexto relacionado ao gênero das vítimas.
Experiências no acolhimento
A falta de aplicação de leis que obrigam a comunicação imediata de episódios de violência de gênero não significa que não haja experiências sobre o tema, pelo menos em Porto Alegre. No âmbito da rede pública municipal, esses casos são levados a um comitê que se reúne mensalmente, do qual fazem parte, além da Saúde, entidades como a Polícia Civil, o Ministério Público e o Conselho Tutelar.
— Há casos no comitê de mulheres com seis, oito, 10 notificações. Aí a gente percebe que está havendo alguma falha na rede e a gente busca entender — diz Priscila Wolff Moreira, chefe da equipe de Vigilância de Doenças não Transmissíveis da SMS.

Uma das iniciativas que busca promover um acolhimento abrangente de mulheres vítimas de violência é promovido pelo Grupo Hospitalar Conceição. Lançado em março de 2024, a Rede de Assistência Humanizada às Mulheres em Situação de Violência do Grupo Hospitalar Conceição (Re-Humam GHC), oferece um serviço multidisciplinar, de médicos a psicólogos e assistentes sociais. Mas sem a interlocução com a polícia.
— A violência de gênero é uma situação muito complexa. Não se trata só de uma questão de segurança pública. Não é só fazer ocorrência policial e solicitar medida protetiva — avalia Debora Abel, coordenadora da rede de atendimento às mulheres do GHC.