Com a previsão de um complexo de data centers e mais duas empresas do ramo de semicondutores nos próximos anos, o polo tecnológico da região metropolitana de Porto Alegre flerta com um novo patamar.
Caso os investimentos se confirmem, impulsionarão formação, emprego e o desenvolvimento econômico e social da região, segundo especialistas. O otimismo é baseado no fato de que o movimento mira dois ativos globais importantes em um contexto de avanço do consumo de dados e da inteligência artificial (IA).
Em paralelo, analistas atentam para a necessidade de análise criteriosa para mitigar impactos ambientais, incentivo ao ensino especializado e reforço na matriz energética.
Entre os empreendimentos que se destacam nesse processo estão o projeto que é chamado de "cidade de data centers" (ou AI City), da Scala, em Eldorado do Sul, a vinda de duas fábricas de semicondutores para a região — da Tellescom, em Cachoeirinha, e da Chipus, ainda sem local exato definido — e o início do processo de expansão fabril do Ceitec.
A chegada dos três novos empreendimentos significa investimento aproximado de R$ 4 bilhões (veja abaixo). A maior parte, R$ 3 bilhões, é relativa ao complexo de data centers.
Além disso, a Meta anunciou a ramificação de um cabo de internet que deverá passar pelo Rio Grande do Sul. Essa ligação deve viabilizar uma conexão mais firme e ambiente ainda mais atrativo para negócios da área de tecnologia.
Polo tecnológico
Matriz energética diversificada no Estado, presença de empresas de tecnologia consolidadas, como HT Micron, em São Leopoldo, e Impinj e EnSilica, em Porto Alegre, parques tecnológicos de referência e mão de obra qualificada estão entre os principais pontos que atraem esses investimentos, segundo especialistas e integrantes do setor.
— Esses investimentos vêm em função da existência de universidades que formam profissionais altamente qualificados, de um ecossistema de inovação que já existe há mais de uma década aqui no nosso Estado. Vêm em função de um ecossistema robusto para os padrões latino-americanos e brasileiros, existente aqui na Região Metropolitana. É uma equação invertida. Eles não vão criar esse ecossistema. Vão reforçar ele — afirma o superintendente de inovação e desenvolvimento da PUCRS e do Tecnopuc, Jorge Audy.
Com a intenção de reforçar a atração de novos negócios e parcerias ao Estado, o governo lançou, no ano passado, a Invest RS, agência de fomento a investimentos. O órgão tem participação ativa nas tratativas para trazer a Tellescom e a Chipus para o Estado.
— A gente é muito conhecido pela atração de empresas de tecnologia. Se eu pegar somente os dois parques tecnológicos que hoje são referência no Brasil, o Tecnosinos e Tecnopuc, estamos falando de empresas como SAP, Dell, HP, Apple, e de várias de outras que vieram para o Estado, justamente por causa dessa vocação que a gente tem. É uma conjunção de fatores — avalia o presidente da Invest RS, Rafael Prikladnicki.
Silvio Bitencourt, gestor executivo do Tecnosinos, também destaca esse potencial. Com um polo ainda mais robusto, esse processo flui, segundo o gestor:
— Isso permite, futuramente, num curto espaço de tempo, atrair novas empresas para o Estado do Rio Grande do Sul, reforçando, então, esse ecossistema de negócios.
Uma das principais estruturas do polo tecnológico da região e que passou por idas e vindas entre operação e paralisação, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada SA (Ceitec) também faz parte dessa nova fase do setor na Grande Porto Alegre. Após retomar a fabricação de chips de radiofrequência no fim do ano passado, a empresa mira em atualização da fábrica para produzir chips de potência (veja mais abaixo).
O presidente da Ceitec, Augusto Cesar Gadelha Vieira, afirma que a vinda de novas empresas, como a Tellescom, também pode ajudar o Ceitec:
— É muito importante para nós, porque ela adiciona-se ao que nós queremos produzir.
Posicionamento em ativos estratégicos
Os data centers são estruturas físicas que armazenam, processam e distribuem dados e informações via conexão de internet. Isso ocorre por meio de computadores potentes, alocados em um complexo. As chamadas big techs, como Meta, Google e Netflix, costumam contratar os serviços para entregas aos clientes. Negócios de IA também são importantes usuários de data centers.
Já os semicondutores são itens usados em larga escala, em produtos como chips, unidades de processamento e microprocessadores. Estão presentes nos smartphones e, com o avanço da tecnologia e da eletrônica, até em veículos, por exemplo.
Especialistas afirmam que os recentes aportes mostram um importante posicionamento do Estado e do país no novo contexto geopolítico que se avizinha.
— A capacidade de computação e processamento de dados se torna desafiadora e os semicondutores têm um papel fundamental nesse processo, porque a capacidade de computação depende de semicondutores, principalmente na ponta, na borda, na nuvem. Então, eu preciso de chips nos carros, eu preciso dos chips nos vestíveis, em todos os locais — explica Bitencourt, do Tecnosinos.
Jorge Audy concorda com esse posicionamento estratégico do Estado, destacando os diversos efeitos desse avanço no ecossistema de tecnologia e inovação:
— Essas áreas de data centers e de semicondutores, e eu acrescentaria uma terceira, que é de hidrogênio verde, são muito atuais porque lidam com as temáticas de transição tecnológica, transição digital e transição ambiental. Temas absolutamente centrais para o desenvolvimento da sociedade, tanto do ponto de vista econômico como científico, tecnológico e social.
Desenvolvimento econômico e social
Sempre que um grande empreendimento ou o aumento de um ecossistema empresarial e setorial são observados em uma região, uma das principais dúvidas é o real potencial desse processo no desenvolvimento econômico e social.
— A área de semicondutores é um setor portador de futuro. Ele agrega muito valor, e quando eu falo agregar valor, significa gerar empregos altamente qualificados, bem remunerados, novos negócios. Isso acaba, inclusive, aumentando a arrecadação do Estado e dos municípios — afirma o gestor do Tecnosinos.
Já Audy avalia que esses aportes, se confirmados, podem gerar mais do que emprego, mas desenvolvimento social na região:
— Esses investimentos em tecnologias de ponta em empresas, em indústrias que são caracteristicamente do século 21, como data centers, semicondutores e hidrogênio verde, estão, e devem estar, a serviço de uma melhoria do ambiente econômico, e isso vai redundar numa melhoria do desenvolvimento social. Ou seja, vai gerar um impacto social, não só pela geração de empregos e de novas oportunidades de trabalho, mas de todo o ecossistema social se refletindo na melhoria da qualidade de vida de todos nós, de toda a nossa gente.
Formação
Com a possibilidade de crescimento do polo tecnológico, urge a necessidade de avanço na formação e atração de talentos, segundo especialistas. O superintendente do Tecnopuc afirma que é “absolutamente fundamental” a ampliação do número de formandos e a criação de novos cursos em áreas como ciências e engenharia da computação e microeletrônica:
— Nosso desafio número um, até te diria mais, eu acho que é o desafio número um, número dois e número três, é a formação de talentos. Formação de gente qualificada nessas áreas fundamentalmente de engenharia e de ciência da computação.
Audy afirma que já existem iniciativas entre empresas, entidades e poder público junto a parques tecnológicos e universidades para incentivar a qualificação da mão de obra, mas destaca a importância de impulsionar isso.
Silvio Bitencourt, gestor executivo do Tecnosinos, afirma que é importante instigar os alunos já nos primeiros anos de ensino, aumentando a qualidade da formação básica:
— Nós temos percebido, historicamente, uma redução do público interessado em cursar graduação, principalmente no âmbito da engenharia. Há uma série de causas em relação a isso. Talvez uma das principais seja a própria formação de nível básico. Como jovens se sentem preparados, a partir do ensino Fundamental e Médio, para avançar em uma graduação que é exigente por natureza, que são as graduações de engenharia, ou mesmo os cursos técnicos mais aplicados.
Impacto ambiental
O avanço do ecossistema de tecnologia também acende um alerta sobre os possíveis impactos ambientais e a necessidade de estratégias para mitigar danos, principalmente no âmbito dos data centers. Essas estruturas costumam consumir muita energia, segundo especialistas.
No caso específico do projeto em Eldorado do Sul, o Scala AI City tem capacidade inicial de TI de 54 megawatts (MW), com potencial de expansão de até 4,75 GW (4,75 mil MW), superior ao consumo de todo o Estado do Rio de Janeiro. Isso tudo em 10 milhões de metros quadrados – o equivalente a 6,5 mil campos de futebol, segundo o governo do Estado.
Haide Maria Hupffer, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Qualidade Ambiental e do curso de direito da Feevale, afirma que o consumo de energia e de água — usada nos sistemas de resfriamento dos equipamentos — são dois dos principais pontos de atenção diante do avanço de empresas de tecnologia.
Ela afirma que esse cuidado tem de ser ainda maior em relação a data centers. Nesse sentido, ela reforça a importância de garantir eficiência energética e equilíbrio durante o processo de instalação e operação:
— Traz um benefício econômico, sim, mas também traz um custo ambiental. Então, isso tem que ser equalizado.
Autor do Atlas Ambiental de Porto Alegre, o professor da UFRGS Rualdo Menegat, afirma que empreendimentos do ramo de semicondutores têm impacto potencial no alto consumo de água ultrapura, no sistema de fornecimento de energia, na emissão de gases de efeito estufa e na geração de resíduos tóxicos.
— Mitigar esses impactos é fundamental para garantir segurança ambiental e sustentabilidade — analisa Menegat.
A Scala afirma que todos os data centers construídos pela empresa contam com um sistema fechado de resfriamento sem desperdício de água. Nesse sistema, o líquido refrigerante tem apenas uma carga inicial e circula sem necessidade de reposição. A empresa também informa que a energia utilizada será 100% renovável. A empresa destaca que essa e outras tecnologias avançadas aumentam a eficiência e reduzem o impacto ambiental.
O secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Sul, Ernani Polo, diz que essa demanda maior por energia também abre as portas para mais avanço em sistemas renováveis:
— Na área de energia, é óbvio que tem um consumo elevado. Mas também já estão acontecendo movimentos de investimentos, porque o Estado tem muita capacidade de produção de energia renovável. Inclusive, tem vários parques eólicos em fase de licenciamento, alguns que não estavam avançando, às vezes por não ter atratividade de investidores.
A Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) informou, por meio de nota, que, no âmbito dos três empreendimentos anunciados para a Região Metropolitana (Scala AI City, Tellescom e Chipus), ainda não há processo protocolado solicitando licença ambiental.
“Quando isso ocorrer, a equipe técnica da Fepam irá analisar os projetos em todos os aspectos e impactos, assim como avaliar os dispositivos de controle necessários e as eventuais medidas de mitigação e/ou compensação necessárias para o licenciamento”, destaca o órgão.
Os empreendimentos
Fontes: Invest RS, Sedec e Ceitec
Scala AI City
A Scala Data Centers prevê a instalação de uma "cidade de data centers" na região. O complexo terá capacidade sete vezes superior à atual disponibilidade de armazenagem e processamento de dados no Rio Grande do Sul.
Local da possível instalação da empresa: Eldorado do Sul
Investimento previsto: R$ 3 bilhões na primeira fase.
Empregos: o projeto prevê 3 mil empregos diretos e indiretos na primeira fase. Até o momento, a empresa não detalha quantos empregos serão diretos na operação do data center.
Contrapartida do poder público: o governo estadual assessora a Scala nessa fase inicial do projeto, auxiliando em pontos como o encaminhamento junto ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), via Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz), para diferimento do imposto na importação de alguns equipamentos. Também acompanha a aprovação dos distritos industriais em Eldorado do Sul e Charqueadas. Até o momento, no âmbito estadual, não existe informações sobre renúncia fiscal no âmbito das contrapartidas, segundo a Sedec. A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da prefeitura de Eldorado do Sul, mas não obteve retorno até as 17h de sexta-feira (4).
Plano de instalação: a primeira fase contará com a construção de um data center de 54 MW. Atualmente, o projeto está na etapa que envolve estudos técnicos, definição da malha urbana e infraestrutura de base (energia, conectividade, mobilidade), segundo a empresa. “Após essa fase, o empreendimento será submetido à análise dos órgãos públicos estaduais e municipais competentes”, informou em nota. A Scala estima o início da urbanização da área entre o final de 2025 e o início de 2026, com o início das obras dos primeiros data centers em seguida.
Chipus
A empresa vai implantar no Estado um centro de pesquisa e desenvolvimento focado em microeletrônica. Prevê área de desenvolvimento de semicondutores para computação escalável. Esse ramo vem sendo amplamente utilizado para as aplicações de inteligência artificial e de computação quântica.
Local da possível instalação da empresa: Porto Alegre ou município da Região Metropolitana
Investimento previsto: R$ 260 milhões no total, divido em duas fases. Na primeira fase, tem a contratação de equipe inicial, construção de prédio e planta-piloto. Já na fase dois tem a operação da planta-piloto e desenvolvimento de novos produtos e ampliação da equipe
Empregos diretos: 100
Empregos indiretos: 200
Contrapartida do poder público: ainda em fase de mapeamento e negociação, segundo a Invest RS.
Plano de instalação: segundo semestre de 2026.
Tellescom
A empresa vai instalar unidades de encapsulamento e teste de semicondutores.
Local da possível instalação da empresa: Cachoeirinha
Investimento previsto: US$ 170 milhões para a primeira fábrica, com a possibilidade de construir quatro unidades em 10 anos
Empregos diretos: 250 por fábrica
Contrapartida do poder público: incentivo via Programa de Semicondutores do RS, com crédito do ICMS. O terreno de 11,7 hectares será via Proedi, programa do governo estadual por meio do qual terrenos e áreas industriais são vendidos a preços subsidiados
Plano de instalação: Construção entre 2026 e 2027
Ceitec
- Após adquirir insumos, como os wafers (placas de silício usadas na produção de chips), o Ceitec retomou a fabricação de chips de radiofrequência (RFID) no fim de 2024, reiniciando a produção em projetos que já tocava antes da paralisação.
- No início deste ano, a empresa recebeu recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no valor de R$ 220 milhões. A verba, fruto de uma parceria com a Fundação de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faurgs), será destinada ao desenvolvimento da produção de semicondutores de potência na fábrica.
- O Ceitec já iniciou o processo de encomenda e aquisição do maquinário para produção de chips de potência com esse aporte.
- A fabricação de chips de potência deve colocar a empresa em um patamar mais elevado no contexto global, abrindo espaço para maior sustentabilidade financeira.
- A produção efetiva de semicondutores de potência na Ceitec está prevista para começar em um espaço de dois anos e meio a três anos. Esse prazo é considerado um requisito comum e padrão global para o início da produção em fábricas de semicondutores, conforme observado em visitas a fábricas na China, segundo o presidente da entidade.